A carta Morte caiu sobre a mesa. Embaixo dela estava a carta Amor, que havia sido sacada momentos antes. A velha que embaralhava o tarot olhou fixamente para Roberto e pronunciou sem cerimônias:
– Em breve chega ao fim algo que você ama com todas as suas forças.
– Amanda?! – exclamou o rapaz.
– Talvez, vejamos.
Quando a bruxa tocou as cartas sobre a mesa, foi imediatamente ao chão afligida por uma violenta convulsão.
O rapaz ficou sem ação por alguns segundos. Quando traçou os passos sob a intensa luz da lua cheia pelo terreno úmido na margem do rio da vila das bruxas imaginava que encontraria respostas para os estranhos acontecimentos que vinham assombrando seus dias e noites. Jamais passou pela sua cabeça que a situação se tornaria ainda pior.
Logo tratou de virar a idosa de lado para que não batesse a cabeça no chão e pegou o manto que estava sobre a cadeira antes ocupada pela vidente. Não viu quando a vela que estava sobre a mesa caiu no chão forrado de palha e começou a incendiar o local.
Sua respiração começou a ficar difícil e seus olhos lacrimejavam. Só assim se deu conta de que as paredes, janelas e a porta não podiam mais ser definidas entre o fogo e a fumaça.
Tratou de pegar no colo a bruxa da melhor maneira que podia e concentrou toda sua energia na tentativa de encontrar um ponto onde o fogo não estivesse tão intenso para tentar passar. Sabia que a parede fraca de tábuas velhas não suportaria mais nenhum minuto sequer antes que tudo desabasse sobre eles.
Concentrou os seus pensamentos no desejo de sair dali e fechou os olhos por um instante.
Quando ia fazer a investida para sair notou que a cabana estava inundando rapidamente. Ele sabia que havia um rio há poucos metros, mas não imaginava que ele poderia encher tão rápido, ainda mais em uma noite para a qual nem havia chuva prevista.
Naquele momento a mente de Roberto estava regada de adrenalina. Já não bastava o fogo, ainda teria que lidar com a água que invadia a cabana. Se não fosse morrer asfixiado pela fumaça ou queimado pelo fogo, certamente morreria afogado.
Para sua surpresa, o fogo foi sendo consumido de forma eficiente. Ele podia ver a porta, por onde correu para sair da pequena construção que foi ao chão segundos depois.
Roberto colocou a velhinha sobre o gramado seco, mais acima na colina onde ficava sua morada e ela foi voltando a si devagarinho. A água do rio foi baixando e voltando ao normal, enquanto ela sussurrava para ele:
– Isso foi magia muito vulgar meu jovem. Você tem que ter mais atenção senão vai acabar morrendo, ou algo pior.
– Como assim magia? E o que é magia vulgar?
– O quê? Você não é um mago? Mas como então nos salvou do incêndio?
– Eu não faço ideia do que você está falando. Vou chamar uma ambulância para te levar ao hospital. Você teve uma convulsão séria e ainda por cima respirou muita fumaça.
Alcançando seu smartphone, o rapaz discou para o serviço de emergência. Poucas pessoas ousavam ir até aquele local, ainda mais durante o entardecer e à noite, pois as senhoras que moravam no local faziam questão de manter as lendas sobre as coisas terríveis que eram acusadas de terem cometido.
Enquanto esperavam o resgate, a velha disse a Roberto:
– Não vamos nos preocupar muito meu filho. Eu previ uma morte essa noite e provavelmente é a minha própria. Pode ir. As demais bruxas farão o que for necessário.
– Não vou deixar você aqui sozinha a mercê de algo pior.
– Vá. Encontre respostas para o que aconteceu essa noite. Tome, leve isso com você. – E com seus dedos ossudos apontou para um bolso no colete que usava. Nele havia um pequenino livro de anotações.
– Obrigado. – Disse Roberto, guardando o livro no bolso da calça, quase como que só para satisfazer a velhinha moribunda.
Momentos depois, com o frio da noite açoitando o rapaz, a senhora deu o último suspiro. Ao redor deles, sem que ele tivesse notado, estavam as outras bruxas da vila. Elas começaram a entoar um canto baixo e foram aumentando o tom até que, em sintonia com a música, pequenas fagulhas de luz e poeira começaram a surgir em torno do corpo da velha bruxa morta. Aos poucos fragmentos tomaram lugar em que ela antes havia estado.
– Ela retornou ao mundo. – Disse uma outra senhora, com a mão sobre o ombro de Roberto.
– Eu não entendo. Como isso é possível?
– Você é um dos que acredita que algo maior existe em nosso mundo, senão não estaria aqui. Infelizmente não podemos te ensinar. É necessário encontrar alguém que tenha a mesma sintonia que você.
– Mas…
– Não. Sem mas. Nada mais deve ser dito aqui essa noite. Vá. Leve o livro que ela te deu e inicie por aí.
Sem rumo certo e com muitas dúvidas em sua mente, o jovem retornou para o centro da cidade, onde havia deixado seu carro. Seu smartphone tinha mais de trinta mensagens e ligações não atendidas, todas de Amanda. Resolveu verificar o livro que havia trazido ali mesmo e para sua surpresa não achou nada legível nele. Só havia símbolos: escritos, desenhados, dispostos em círculos, triângulos, pentagramas e outras formas. Havia também um desenho que reconheceu ser uma Fênix e que não estava exatamente desenhada no papel. Parecia que alguém havia passado o lápis por cima de uma moeda ou algo do tipo, fazendo com que o relevo ficasse marcado ali.
O sol já estava alto quando Roberto chegou em casa naquele domingo nublado. Os eventos que ocorreram na noite passada estavam ecoando na cabeça do rapaz de forma intensa ainda. Muitas dúvidas iam e vinham, se batendo entre descrença e aceitação.
Amanda surgiu na porta interna da garagem vestindo seu roupão e com uma expressão de preocupação.
– Aonde você se meteu, sabe que horas são?
– Eu fui na vidente que te falei. Precisava entender o caminho que devo seguir, agora que perdi o emprego por causa dessa maldita pandemia.
– Sim, eu sei, mas mesmo sendo em outra cidade, levou a noite toda?
– Coisas aconteceram. Preciso descansar e encontrar mais respostas, pois surgiram novas dúvidas.
– Deixa-me te ajudar com isso.
– Certo, mas depois de um banho e um lanche, estou faminto.
– Certo, vou preparar algo.
No avançar do dia as pesquisas feitas por Roberto tanto na internet comum como na deep web foram se intensificando e gerando resultados cada vez mais estranhos. Nada fazia sentido na cabeça do rapaz e muitas informações eram desparelhas e desconexas. Apenas uma coisa se repetia de forma insistente: menções a uma fênix apareciam em diversas formas diferentes. Uma delas era uma moeda muito similar ao desenho encontrado no caderninho da bruxa que Roberto trouxe para casa.
Aprofundando a pesquisa cruzando os dados da fênix, magia e do desenho da moeda que ele suspeitava ter sido transferido para o livrinho, Roberto descobriu que existia um local chamado Phoenix em diversas cidades do mundo. Todas elas usavam o mesmo logo idêntico ao símbolo do livro onde havia uma fênix com uma asa acima e outra abaixo, formando um círculo, mas muitas delas tinham suas próprias versões de fênix nas fachadas. A informação era escassa a respeito do local e ele encontrou apenas o site da boate, mostrando um código QR com o logo da fênix no meio.
Roberto pegou o seu smartphone e o usou para ler o código de barras. O aplicativo de mapas abriu automaticamente, indicando um local afastado na zona sul de Porto Alegre. Decidido a encontrar qualquer pista que fosse sobre o que tinha presenciado aquela noite na ilha das bruxas, decidiu ir até o local indicado no seu GPS.
Dentro do carro, Roberto recebeu uma ligação sem identificação. Deixou o aparelho cair com o susto. Quando atendeu, a voz firme de uma mulher o surpreendeu:
– Boa noite. Antes de prosseguir para o endereço que você obteve, me encontre em frente ao shopping Moinhos de Vento. Tenho algo que será do seu interesse.
A essa altura nada mais soava estranho para o rapaz e nem sequer percebeu que a noite já estava avançada quando ligou o carro e partiu para o shopping. Ele estava mais preocupado em encontrar respostas do que com qualquer perigo em que pudesse acabar se metendo por aceitar ordens de estranhos ligando de números desconhecidos.
Amanda, que acompanhava a mudança de comportamento de Roberto nesses últimos dias, desconfiava que ele estivesse entrando em depressão ou traindo ela, pois ele mal se alimentava e passava horas a fio na frente de seu computador. Ela já havia acompanhado e ajudado ele a passar por dois períodos de depressão no passado. Nem imaginava que ele estava absorto em pesquisas de coisas sobrenaturais. Quando ele levantou da cama naquela noite ela imaginou que ele tivesse ido ao banheiro, mas quando ouviu o barulho do motor do carro, levantou-se rapidamente e correu em direção à porta da garagem para conferir se ele havia mesmo saído. Voltou ao quarto, trocou de roupa com pressa e saiu correndo com o smartphone na mão já pedindo um Uber.
Roberto nem imaginou que ela fosse segui-lo e não lembrou que haviam instalado em ambos os telefones um aplicativo de segurança para que soubessem onde estavam, em caso de emergência. Um sedan preto chegou rapidamente, Amanda estava concentrada no aplicativo de rastreamento do smartphone de Roberto e entrou no carro rapidamente, dizendo ao motorista:
– Seguinte, estou seguindo meu namorado. Acho que ele está me traindo. Me ajuda?
– Claro, moça. Vamos pegar o safado com as calças na mão. – Respondeu o motorista que usava um terno completo, com uma gravata preta e uma camisa cinza. Ele soltou uma risada forçada e seguiu em frente na direção que Amanda mostrou para ele no mapa.
Roberto já havia chegado ao shopping quando Amanda saiu de casa, pois moravam perto de lá. Algo de sombrio estava no ar daquela noite de inverno e até as luzes pareciam mais escuras que o normal. A mulher que havia ligado para Roberto estava parada exatamente na frente do shopping, conforme combinado. O movimento na rua em frente era intenso como de costume nos finais de semana, afinal, era uma rua boêmia da cidade. Nem o frio e nem a sensação de trevas que se abatia sobre a região pareciam incomodar os frequentadores da área, que continuavam suas vidas como se nada estivesse acontecendo. Até mesmo a pandemia que atinge o mundo não mudou o ritmo daquela região rica da capital. Nesse cenário ninguém deu a mínima atenção quando o carro prateado de Roberto parou ao lado da mulher que o esperava, vestida para a noite de festas, mas segurando um guarda-chuva preto enorme. Imediatamente ela deu a volta pela frente do carro e entrou pela porta do carona.
– Chegou rápido. Meu nome é Mirelle. Prazer em te conhecer, Roberto.
– Como sabe que sou eu quem você estava esperando?
– Assim como você soube que era comigo que devia falar assim que colocou os olhos em mim. Semelhantes se reconhecem. Agora não temos muito tempo para esses detalhes. Tem gente interessada em nos parar e precisamos agir o quanto antes se quiser descobrir mais sobre os assuntos que estava procurando.
– Como sabia que…?
– Sabemos de muitas coisas e você não foi muito discreto, diga-se de passagem. Deixou muitas pegadas nesses últimos dias, mas pra nós é brincadeira de criança apagar tudo.
– Certo. Então…
– Vamos ao endereço que o código QR te indicou.
– Ok.
Amanda estava há alguns metros deles quando Mirelle entrou no carro de Roberto. Suas suspeitas começaram a parecer mais reais e o motorista lhe disse:
– Pois é moça, parece que você estava certa. Quer continuar seguindo e ver onde vão?
– Sim, siga em frente, vou resolver isso hoje mesmo, seja o que e como for.
Cerca de uma hora depois de encontrar Mirelle no shopping, Roberto chegou a uma estrada de chão nos caminhos rurais da zona sul de Porto Alegre, por onde continuou a viagem.
O carro em que Amanda estava os seguia bem de longe para que não fossem vistos. Quando chegaram a uma porteira numa parte bem ruim da estrada, Mirelle disse para Roberto:
– É aqui. Pegue isso. – E deu a ele um objeto pequeno que, no escuro, ele não conseguiu identificar, mas pelo tato imaginou ser uma moeda.
– Para que iss… oh meu deus!
O rapaz não teve tempo de terminar a frase quando viu, após a porteira, uma imensidão de carros estacionados nas laterais do caminho que levava até um enorme e iluminado casarão. Parecia que estava pronto para o Natal e tinha até mesmo dois holofotes enormes que ficavam se movendo e projetando seus focos em desenhos aleatórios nas nuvens.
Roberto estava boquiaberto e segurava a moeda como se tudo fosse desaparecer quando a soltasse. Isso era bem verdade, visto que a magia que permitia que ele entrasse no terreno e visse tudo aquilo se dava por causa da posse do artefato.
Entraram pela porteira e seguiram até um lugar onde puderam estacionar o carro. Muitas pessoas seguiam pelo caminho de pavimento impecável. Vestidos longos e ternos de fraque, roupas típicas da região e de outras regiões do mundo. Havia todo tipo de pessoas ali naquela noite.
Ao lado das janelas da casa de quatro andares havia flâmulas com o mesmo desenho da fênix que Roberto havia visto no livrinho da bruxa e que estava também na moeda, que ele viu ao olhar melhor na luz abundante ali presente.
– Tudo isso é o quê? Um mundo separado do nosso? A porteira era um portal ou algo do tipo? – Questionou Roberto ainda atônito com o que estava ao redor.
– Mais ou menos isso. Na verdade, sem a moeda você estaria vendo o mesmo que qualquer outro humano comum.
– Então, o que estamos fazendo aqui mesmo?
– Gostei. Direto ao ponto. Estamos aqui para encontrar o Suserano do Rio Grande do Sul, o senhor Magno. Ele tem algo para entregar a você, além de conselhos e um teste.
– Teste é?
– Sim. Você verá quando entrar.
Poucos minutos depois que adentraram o caminho até o casarão, Amanda chegou no carro preto em que estava. Só conseguiu ver o carro deles parado a meio caminho entre a porteira fechada e as ruínas do que outrora havia sido uma bela casa.
– Moça, esse lugar deve ser assombrado. – Disse o motorista, quase rindo.
– Vou esperar aqui. – Respondeu Amanda sem sequer se dar conta do que ele havia dito. – Você pode ir embora e encerrar a corrida.
Nesse exato momento o smartphone de Amanda recebe a notificação de que o motorista do Uber cancelou a viagem por ter esperado demais no local de encontro. A garota olha para o motorista ali com ela, surpresa.
– Ah, mas aí que está a questão moça. Eu não sou motorista de Uber.
Amanda ficou choque, voltando para a realidade do interior do carro. Tentou rapidamente abrir a porta para sair, mas sem sucesso. Foi então que o motorista apontou o smartphone na direção dela e a última coisa que ela viu foi um flash. Caiu num sono profundo.
Saindo do carro em direção à porteira, o motorista tirou um aparato eletrônico do bolso, parecido com um par de binóculos de visão noturna, mas cheio de fios e peças com líquidos estranhos pendurados. Colocou o item sobre os olhos e, com isso, conseguiu enxergar parte do que Roberto e Mirelle viram quando chegaram na porteira, momentos antes. Em poucos segundos o aparelho começou a soltar fumaça e os vidros com líquidos todos explodiram.
– Malditas engenhocas mal feitas. Preciso pedir mais orçamento para o partido. – Disse o homem, em voz alta, para si mesmo.
Voltou para o carro e tratou de partir dali logo em seguida com sua prisioneira, ainda desacordada.
Roberto e Mirelle foram recepcionados na porta de entrada por duas moças muito bonitas, que logo trataram de deixá-los entrar. Por dentro, o casarão se mostrava um local com estilo burlesco. Lustres gigantes pendiam do teto alto, as pessoas conversavam em torno de mesas bem distribuídas e mulheres e homens vestidos com as roupas características dos anos 1920, oferecendo bebidas e pequenos aperitivos.
No fundo do grande salão havia quatro elevadores com portas douradas. Mirelle foi seguindo em direção a um deles enquanto Roberto ainda estava olhando para todos os lados, atônito.
– Ele está te esperando. Vamos logo. – Ordenou a mulher, já mostrando certa impaciência.
No elevador não havia botões. Ele era todo espelhado por dentro. Ao entrar a garota desenhou um símbolo com a mão direita e nisso o elevador fechou e começou a subir.
– Agora é com vocês. Eu sigo meu caminho. Pode ser que nos vejamos ainda por aí. Adieu! – Disse Mirelle.
– Tchau. – Respondeu Roberto, meio incerto ainda sobre o que ela quis dizer com Agora é com vocês.
O rapaz saiu para um corredor forrado de tapetes de veludo escuro por todos os lados. Quadros adornavam as paredes e a iluminação era branda. Poucos passos adiante estava um homem magro e bem vestido. Roberto suspeitou que fosse Magno e levantou a mão para cumprimentá-lo, que respondeu ao ato com um sorriso nos lábios.
– Entre no escritório, temos algumas coisas para discutir antes de você voltar para casa.
– Exatamente. Eu estou em completa confusão com tudo o que está acontecendo.
– Excelente! Se fosse diferente disso algo não estaria certo, concorda?
– Acho que sim.
– Pois então, vamos começar pelas suas pesquisas na internet. De onde tirou as informações que tem buscado?
Roberto ficou um pouco desconfiado com a pergunta, mesmo assim resolveu mostrar o livro da bruxa.
– Interessantíssimo. – Exclamou Magno. – Tem até o símbolo aqui do clube. Bom, vamos às suas perguntas.
– Então, o que está acontecendo comigo?
– Você está despertando. Você é um mago. E se eu não estiver errado, um dos poderosos. Só precisa lapidar um pouquinho suas habilidades.
– Então é verdade? Digo, já vi coisas muito estranhas acontecendo, mas nunca pensei que eu pudesse ser um mago.
– Ninguém pensa, até que aconteça. Claro que tem os que buscam e forçam o véu nessa busca. E não são menos importantes que nós que nascemos com o Dom. Só é mais trabalhoso para eles e normalmente são pessoas que querem fazer coisas ruins com esses poderes.
– Entendo. Então, que passos devo seguir a partir de agora?
– Primeiro temos que fazer um foco arcano para você. Mas antes disso, tenho um teste para realizar.
– A Mirelle comentou algo a respeito.
– Mas antes eu tenho um conselho para você: deixe que Amanda siga o caminho dela. Vai ser melhor assim. Mais seguro para ela e mais tranquilo para você.
– Deixa-me ver se eu entendi: é para eu terminar meu relacionamento com ela?
– Exato. Como eu disse, sua vida vai ser mais tranquila e a dela mais segura.
– Nem pensar. – E já ia se levantando quando Magno resolveu aliviar a conversa.
– Ok. Não precisa, foi só um conselho.
– Certo.
– Então, escolha um dos quatro livros que estão com a capa para baixo sobre a minha mesa. Pegue o primeiro que vier à sua mente e abra numa página qualquer.
– Esse é o teste?
– Sim. Simples, não é?
– Meio frustrante eu diria.
– O que esperava? Lutar contra um dragão?
– Não, mas…
– Vamos logo. Não temos a noite toda.
Roberto pegou o segundo livro da esquerda para a direita e o virou. Na capa estava escrito Elementos, com um desenho dos quatro elementos conhecidos mais dois que ele não conhecia.
– Muito bem. Que página você abriu? – Perguntou Magno.
– Manipulação da água, nível dois.
– Ótimo. Alguma coisa relacionada a água já aconteceu com você? Algo realmente extraordinário.
– Sim, quando eu visitei a bruxa na ilha das bruxas a cabana dela pegou fogo e o rio subiu, apagando o incêndio.
– Nossa, isso é bem impressionante para alguém que está recém despertando.
– Eu nem sei como fiz aquilo.
– Então vamos aprender. Vou fazer o seu foco arcano.
– Interessante. Para que serve?
– Para que você consiga focar melhor as suas magias. Evita também efeitos indesejados, principalmente quando houver adormecidos por perto.
– Adormecidos seriam os que não tem magia?
– Sim, e outros sobrenaturais.
– Como assim outros sobrenaturais?
– Existem tantas criaturas nesse nosso mundo que você não dormiria mais se eu começasse a contar.
Magno fez um floreio com as mãos no ar e símbolos começaram a surgir em uma luz prateada. De dentro dela surgiu um pingente em forma de gota d’água. Roberto pegou o foco arcano e o guardou no bolso e logo se virou novamente para Magno e perguntou:
– E sobre você? O que é um Suserano?
– Pois então, um Suserano é um…
Magno foi interrompido por uma enorme explosão vinda do lado de fora da casa. Correndo para a janela os dois puderam ver um tumulto nos jardins e pessoas desaparecendo em meio a belos jogos de luzes coloridas. Roberto imaginou que estivessem se teleportando para longe dali.
O caminho de saída estava tomado por furgões pretos e vários homens de terno, usando capacetes com binóculos, estavam atirando em quem oferecesse resistência. Explosões nas vans e nas armas deles mostravam que estavam lutando de volta. Mas Roberto não viu nada do que ele imaginava que ocorreria numa luta de magos.
– Droga, a Tecnocracia está aqui. Vamos ter que fugir.
– Mas espera aí, a gente não é mago? Não é só soltar umas bolas de fogo na cara desse povo aí?
– Como eu disse, você tem muito o que aprender. Toma aqui o seu foco arcano. Vou te teleportar para casa.
– Espera e o …
Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, Roberto estava na frente de casa.
– …meu carro… – Concluiu a frase em voz baixa.
Nisso, notou que havia um sedan preto parado na entrada da garagem e foi logo tratando de entrar dentro de casa onde, para sua surpresa, Amanda estava amarrada a uma cadeira no meio da sala. Dois homens estavam na mesma sala e começaram a atirar nele assim que ele entrou pela porta. Roberto se jogou deitado no corredor no meio da casa, se protegendo atrás da parede e das estantes de livros que estavam ali. Um aquário que ficava do outro lado do corredor explodiu quando um tiro o atingiu, derramando água por tudo pelo chão.
No corredor, deu de cara com outro homem, mais corpulento e careca, vestido com roupa social, gravata e uma camisa cinza.
– Wagner! Gritaram os dois homens que atiravam em Roberto, ele está indo na sua direção!
– Sim, eu estou vendo. – Retrucou Wagner.
– O que querem com a Amanda? – Perguntou Roberto.
– Queremos você, garoto. Venha sem confusão que não machucaremos a garota. – Respondeu Wagner.
– E o que querem comigo afinal? Sou apenas um contador desempregado.
– Contamos com você para nossos planos.
– Então… vocês são da Tecnocracia? – Roberto murmurou, mas foi ouvido por Wagner.
– Só um contador desempregado não é mesmo? Sei. Você é muito mais do que isso.
Roberto pegou seu foco arcano de dentro do bolso discretamente enquanto falavam. Fechou os olhos e imaginou os dois homens que estava na sala com Amanda se afogando, ali mesmo. O efeito não foi exatamente o que ele esperava: os dois homens começaram a chorar compulsivamente, lacrimejando de forma incessante.
Wagner percebeu o que o rapaz estava fazendo e decidiu correr atrás dele para pará-lo, mas acabou caindo no chão quando a água do aquário se solidificou virando gelo muito escorregadio, após ser tocado pela energia azul que vinha das mãos do novo mago.
Roberto foi soltar Amanda, que ainda estava desacordada quando ele chegou, mas para sua surpresa ela já havia se soltado. Os dois homens que ele havia feito chorar com sua magia ainda destreinada estavam mortos. Jaziam ali apenas seus corpos retorcidos e esqueléticos, como se a vida tivesse sido sugada de dentro deles.
Amanda estava no meio da sala, de costas para o corredor e flutuando a uns vinte centímetros do chão. Seus cabelos compridos flutuavam junto, como se ela estivesse suspensa em um local sem gravidade. Quando ela se virou, sorriu para seu namorado apontando a mão em sua direção e disparando um raio de luz verde que passou pelo lado de sua cabeça e atingiu o ombro de Wagner.
Roberto estava paralisado com aquela cena. Nunca teria imaginado que Amanda seria também uma maga, ainda mais tão poderosa.
Correndo para a porta, Wagner conseguiu fugir enquanto Amanda, esgotada pelo uso de tanta magia, caía aos braços de Roberto, sem vida.
O que ele amava com todas as suas forças havia morrido, conforme a velha bruxa previra. No momento em que sua vida como um humano comum findou, algo novo nasceu: Roberto acordou para a magia e descobriu que o amor de sua vida também havia sido uma desperta.
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